segunda-feira, 2 de maio de 2011

pancake, palcos e cigarro

Guardava ao lado do semivestido vermelho, de estilo espanhol e várias saias sobrepostas, um hábito negro e um terno acinzentado. Só usava o primeiro - quando usava -, as personagens cada vez menos precisavam de roupas.

Conferiu que havia trazido o cigarro e trincou os dentes só de lembrar do gosto de nicotina e alcatrão, odiava fumar, fora dos palcos nunca suportou o cigarro. Mesmo em casa, quando jovem, com seu pai sentado, chamando-a, com a gravata frouxa e o cigarro entre os dedos, e talvez justamente por isso o odiasse tanto: o pai e o cigarro.

Encheu-se de artifícios: pancake e mais pancake e mais pó e talvez mais pós e várias cores e o semivestido e o cigarro e cara pronta.

Subiu ao palco de madeiras velhas e soltas, olhou ao redor e começou o número. Bem à frente o mesmo velho repugnante com colarinho amarelado que insistia em lamber-lhe as orelhas em troca de enfiar uma nota azulada entre os seios. Era pra sordidez que estava ali, o estomago era socado por dentro, mas ferozmente sorria. Asco, os putos sentados e esfregando os paus. Asco, tudo. Era a hora de sentar na cadeira e fazer a “cara de que queria aquilo tudo mais que qualquer outra coisa no universo”, colocava o cigarro entre os lábios e tragava: o hálito medonho do pai. Mais asco. O inferno avermelhado e as luzes queimadas se apagavam. Palmas, vaias, assobios, xingamentos. Liberta. Era o fim.

Em casa deixava uma sacola com batatas para fazer depois; beijava o filhinho. Da sala ouvia o marido reclamar que era detestável aquele hábito de fumar escondida enquanto fazia compras. Ela prometeu parar, colocou o velho crucifixo de volta no pescoço, e disse que foi só um cigarrinho. Não mentira de todo, odiava mentir, desde os tempos do convento.